quarta-feira, 9 de maio de 2012

As cocadas

     Eu devia ter nesse tempo dez anos.Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo.
     Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. Acompanhei rente à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até a apuração do ponto. Vi quando foi batida e estendida na tábua, vi quando fi cortada em losangos. Saiu uma cocada morena, de ponto brando, atravessada de paus de canela cheirosa. O coco era gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou excelente . Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo mais numa terrina grande, funda e de tampa pesada, Botou no alto da prateleira.
     Duas cocadas só... Eu esperava quatro e comeria de uma assentada oito, dez, mesmo. Dias seguidos namorei aquela terrina, inacessível de noite, sonhava com as cocadas. De dia as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente. Sempre eu estava ali perto, ajudando nas quitandas, esperando,  aguardando e de olho na terrina.
    Batia os ovos, segurava a gamela, untava as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno e socava as cascas no pesado almofariz de bronze.
    Estávamos nessa lida e minha prima precisou de ima vasilha para bater um pão de ló´. Tudo ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa e deslembrada do seu conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiiii...Apanhou um papel pardo sujo, estendeu no chão, no canto da varanda e despejou de uma vez a terrina.
    As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela e feitas de coco leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.
    Aí minha prima chamou o cachorro: Trovador... Trovador... e veio o Trovador, um perdigueiro de meu tio, lerdo, preguiçoso, nutrido e abanando a cauda. Farejou os doces sem interesse e passou a lamber, assim de lado, com o maior pouco caso.
    Eu olhando com uma vontade louca de avançar nas cocadas.
    Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta- má e dolorida- de nao ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro .

                           Autora: Cora Coralina
                           Livro: O tesouro da casa velha
                             

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